17 outubro 2005

II

I – A ida de mim

Acendo mais um cigarro. Bebo outro trago amargo na solidão escura da noite mal iluminada.
Sentado no chão. Meio despido, meio vestido. A mão direita afaga o braço direito. E sinto-me. Sinto-me mais humano. E choro.

As duas mãos tocam-me a face.
Deito-me de costas.

Olho o tecto escuro. Não consigo pensar em nada. Injecto-me outra vez. Os arrepios sobem por mim.
Sabe bem. Sabe bem o prazer que ressurge em mim.

Os olhos reviram-se.

E no minuto em que tudo se passa à nossa frente. No minuto em que sabemos que não vamos conseguir viver. No minuto que a morte aguarda à porta da sala, penso em tudo o que nunca tive tempo para pensar.

E errei em muita coisa. E muita coisa errou por minha culpa.

Vagueei por ruas escuras. Quando de dia tinha a certeza de que saberia o caminho de volta. Arrisquei tão cedo. Estraguei a minha vida.

Agora estou prestes a partir.
A deixar tudo o que sempre me passou ao lado por orgulho. Por saber que tudo depende de mim. Por saber que basta um pouco de mim para que tudo o que quero esteja bem… connosco. E mesmo que não esteja não sou eu que fico a perder.

Agora estou prestes a partir…
Deixo saudade a muitos.

O sangue esvai-se pelos olhos… e murmurejo de dor e sofrimento.
Do tecto pingam gotas que me tocam o corpo quente.

Quem me ama está no quarto ao lado.
Não quero acordar ninguém… deixem-me decidir o que quero desta vez. Pensar.

As forças vão-se… e com elas se vão os sentimentos. O amor… a dor… a solidão que sentia tão intensamente…

Acabou… acabou tudo agora.

E o que mais peço é que ninguém entre agora na minha sala e me toque. E chore porque eu não estou. Chore sabendo que não mereço.

Um homem quando morre por sofrer deve morrer como quer…

II – A chegada de mim

Vagueio pela sala.
Deambulando por ali sem pensar no que em mim quero que aconteça.
A tristeza derruba-me.
A impossibilidade de chorar faz-me soltar murmúrios. Murmúrios de quem grita por dentro. Pequenos sons abafados germinam da pele quente.

Esquartejo-me. Choro de dor. Aproveito para sentir como se chorasse de tristeza. Tão lindo o sentimento que sempre me acompanhou e que nunca soube exprimir.

Não sou feliz mas sei o que é ser triste. Assim saberei como seria se fizesse o que querem que faça.


Tenho problemas. Admito. Mas não é por isso que sou menos que todos.

As seringas olham para mim. Olham por mim.
Aguarda-as um braço virgem.

A água provoca efeitos em mim… a água na seringa provocará em mim o maior sorriso de todos. O sorriso de quem sorri porque sabe que deixará de ser triste…

1 Comentários:

Blogger Miriam Luz disse...

I – A ida de ti

Humano. Nu. Não há meio termo.
Injectas mais uma vez. Nunca esperas por mim. Fazes sempre tudo sozinho...
Sabe bem e sabe só a ti.
Não pensas em nada porque haverá sempre alguém para pensar em tudo.
Chora. Chora. Chora. Chora o que não choraste quando a tristeza era maior que a grandeza.
Chora o que só foste capaz de chorar quando ela passou à tua frente. Slow motion. Fica sempre bem. Dói mais. Vai, ainda podes agarrar aquele momento!... E o outro! Mas não podes... Porque os momentos são como as borboletas... Quando os vemos já passaram.
Tudo naquele minuto. O da visita à porta da sala. Convida-a a entrar. Conversem.
Medo. Medo de errar outra vez. Porque há visitas que nos tomam conta da casa...
Já entrou.
Espera. Traz alguém consigo. Trouxe quem estava no quarto ao lado. Quando tudo o que querias era estar sozinho.
Toca-te. Sorri. Tudo depende de ti. Não... Porque agora tens visitas. Não estás sozinho. Pois não...
Tens uma sra. morte a puxar-te um braço. Uma quem-me-ama-está no-quarto-ao-lado a puxar-te pelo outro.
Continuas a vaguear por ruas escuras. Mas não vais muito longe, porque estás confinado à sala. Sempre estiveste. Porque faltou sempre a coragem para abrir a porta.
E foste deixando sempre alguma coisa pelo caminho. Para voltares quando quisesses (porque afinal quem-me-ama-está no-quarto-ao-lado deixou a porta aberta e os braços em berço). Ficaram lenços pelo caminho, poemas de amor, florzinhas amarelas, rosas nascidas de guardanapos de papel, beijos fortuitos quando eram proibidos... ficou tanta coisa pelo caminho que não te perdes mais. Olhas para trás e vais seguindo por entre as coisas. Não pises nada... quem-me-ama-está no-quarto-ao-lado vai querer tudo de volta. Porque a fitinha de seda vermelha está à espera, para guardar tudo, bem apertadinho. Porque não te perdes mais e não vais precisar de marcar o caminho.
Pois bem. Se um homem quando morre por sofrer deve morrer como quer… Uma mulher quando ama deve amar como quer.

II – A chegada de ti

Vens ensanguentado. Foi sempre assim que te vi. (Sim, na mão sempre a seringa olhando por e para ti.)
Não choras porque houve alguém que já chorou tudo por ti. Não ouviste? Pois. Estava no quarto ao lado.
Isso! Esquarteja-te! Deixa-me ajudar-te amor. Adoro quando fazemos coisas divertidas juntos.
Podemos fingir que somos felizes. Posso fingir que a tua dor não me dói mais que a minha. Ou não me dói mais que a ti.
Podes fingir que sabes sorrir. E eu posso fingir que nunca fiz outra coisa na vida.
Queres?
Ou queres chorar comigo os dias (foram tantos!) que andaste perdido por aí... Os dias da ida de ti.
Os dias da morte de mim.
Os dias em que a água da seringa eram as "águas de meus olhos tristes!". Os dias em que sorriste e eu chorei.

9:02 da tarde  

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