24 setembro 2006

Amo-te

Amo-te

Eu nunca te disse que não vivia sem ti.
Nunca disse que não morria de boa vontade com um fio de sangue a escorrer-me pelo queixo.
Nunca disse que os meus segredos são teus.
Foi tudo imaginação tua. Tudo da tua cabeça.
E aí sentado olhas-me de alto a baixo como se te devesse este mundo e o outro.
Mas não te devo nada. Não te devo nada porque nunca me deste nada. O que pensas que deste não deste. Foi um empréstimo. Ou foi um investimento.
Mas as fichas estão sempre erradas. Apostas tudo naquela e afinal troca-te as voltas.
Sentas-te nessa sala suja que nunca me deixaste limpar e relembras tudo o que já apostaste. E mais o que perdeste. E percebes que apostaste mais do que tinhas e que também perdeste mais do que tinhas. Hoje talvez me deixes entrar nessa sala. Digo-te que ainda tenho muito para limpar e não posso esperar que acabes de chorar. Há teias de aranha e pó e lixo e tu. Tudo no mesmo canto. E eu só preciso de uma vassoura para destruir tudo. As teias de aranha e o pó e o lixo e o tu. E regozijo-me com o poder que tenho, agora que a fraqueza se apoderou de ti.
Tens uma coroa de insectos em torno da cabeça. Tal coroa de espinhos. Tens feridas secas que eu limpei quando imaginaste que te dava alguma coisa. Tens a roupa rasgada por mim. Quando pensei que o meu corpo era o bálsamo dos deuses. Ou qualquer outra coisa que nunca foi. Tens os dedos dos pés roídos pelas ratazanas que eu não consigo enxotar (sempre o fizeste melhor que eu. as ratazanas e o resto.)
Ainda tens sangue no indicador. Daquela vez que escreveste amo-te na parede. Para eu ver quando chegasse do emprego. Estava bonito, mas cheirava mal. E o sangue seco não é tão brilhante, nem tão intenso. Não tem tanta paixão. Tu também já não tens tanta paixão. (Talvez nem eu tenha.) Mas continuo a lavar-te o rosto todos os dias, a dar-te água e pouco mais. Porque precisas de mim. Tenho pena de ti. Desse amor que escreves nas paredes e que só existe na tua cabeça. Dessa coroa de insectos que continuas a acreditar ser de flores. As flores ficaram comigo meu amor. Coroas de flores que guardei para o meu caixão. Porque quando acabar as limpezas vou embora. E vou querer levar flores perfumadas comigo. Porque o cheiro desta sala causa-me náuseas. E se tu não sais daqui, saio eu sem ti.
Desta vez não vou levar-te comigo. (Antes não te levar do que perder-te pelo caminho.)
Agora descansa. Sinto que amanhã o sol não vai nascer. Esta noite fico aqui contigo. Vou abraçar-te só mais esta vez. Não penses que te amo. Não amo. Só não quero que morras sozinho. E sei que não passarás desta noite. Beijo-te. Amo-te, meu amor...
E faleço-te nos braços. Apenas para não te ver morrer.

Litostive

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