27 fevereiro 2006

Terra do Nunca

Terra do Nunca

Na terra do nunca somos quem mais de nós teme. Sabemos onde começa o céu. Vimos o sol tocar no mar, sentados no único banco de madeira no topo daquela falésia.

E a sensação é única.

Sinto a brisa acariciar-me o rosto, fecho os olhos e oiço esta música que toca ao longe. Um rapaz que pega uma viola e canta para todos os que no seu mundo se sentam a pensar junto ao mar.

Fumo um pouco daquilo que dá algum sentido à minha vida, desta vez misturado com algo que dará um toque de poesia no fim da música.

Lentamente, fecho os olhos. Sinto que me vêm buscar. Da terra do nunca para a terra dos sonhos.
Pegam-me na mão. Suavemente deixo-me embalar pelo som, pelo cheiro, pelo amor que paira no topo desta falésia.

E no momento que corremos os dois de mão dada em direcção ao mar, num salto que daria para voar até ao sol, sinto o corpo em queda gravitacional. Sinto a alma em ascenção levitacional.

E é ali, naquele momento, que me separo de mim. O corpo flácido mergulha nas águas mornas da terra do nunca. A alma, de mão dada com a morte, sobe em direcção à terra dos sonhos, dos meus sonhos...

E vejo-te, cá em baixo, a correr em direcção ao sitio onde esperei por ti até não poder esperar mais.

Continuo a sorrir, a morte faz-nos felizes por irmos com ela. Verte-se uma lágrima, sinal do que senti por saber que te teria encontrado esperasse eu mais 5minutos...

You... walked away, heard them say"Poison hearts will never change,"walk away again.”A.F.I. – The Leaving Song

Kimera

24 fevereiro 2006

Bordado de menina prendada

Bordado de menina prendada

Luz apagada e lembrança acesa.
Que isto da escrita tem muito que se lhe diga. Pá.

Ostentava aquele sorriso como quem exibe um casaco novo pelas ruas da Baixa.
Tipo toma-lá-que-o-meu-é-mais-fixe!
E era.
Era aquele sorriso irritante. Que nos ridiculariza quando falamos do aquecimento global e da OPA do Belmiro.
E como se não bastasse os dentinhos perfeitos (e como eu adorava passar a língua naqueles dentes), quando sorria fazia aquela curvinha no cantinho. Um pouquinho acima da boca.
Epá... que sorriso.
Olha, se pudesse casava contigo.
Aquilo sim, era o verdadeiro sorriso bonito. Vocês sabem lá o que dizem quando abrem a boca e atiram "ai tens um sorriso tão bonito". Tretas.
Amuei.
Tás proibido de sorrir. E tás de castigo outra vez.
E cosi-lhe a boca. Não fosse ele cair em tentação.
(Aquilo doía, tadinho. Imagino... Nunca ninguém me coseu a boca. Também nunca fui adepta de sorrir quando carrego o mundo às costas. E isto pesa pá... Isto pesa.)
Mas se calhar doía-me mais do que a ele. Ah pois doía.
E o sorriso sempre lindo. A boca cosida e aquilo sair-lhe pelos olhos. Como uma lágrima.
Que fixe. "O sorriso a sair-lhe dos olhos como uma lágrima".
Só tu para me pores a dizer coisas bonitas.
Era pa ser bonito, sabes? Mas nunca consigo. Estas coisas não me saem bem.
Mas tens a boca cosida e nem dizes nada.
Ai que seria de ti sem mim... Traz cá a boquinha amor.
E corto levemente os cantos.
Experimenta agora.
E lá forças um sorriso. Saiu-te bem este. Tenta outra vez.
E sorris. E comes uma bolacha inteira só para me mostrares como és forte.
Olha, agora estragaste o bordado todo que te fiz na boca! Olha para ti!
Tento dar um jeito naquilo mas já não vai lá.

Ele resolve a vida como quem resolve um sistema de equações.
Este praqui, aquele prali, corta aqui, soma ali. Tá feito.
Indomável, o rapazito. Mas fica-lhe bem.

Um dia digo-lhe: tens piada pá.
E ele vai responder-me: eu sei.
Depois pensa um pouco e diz naquele tonzinho que me dá a volta à cabeça:
"Pá."

És especial. Pá.
Com e sem aspas.


Litostive

22 fevereiro 2006

Rua dos Fados

Rua dos Fados

Amar-te é ouvir o silêncio que nasce entre as nossas gargalhadas quando descemos aquela rua de mãos dadas. E oiço-o tão bem...

Sol de Inverno.
Peito que não sangra.
Lábios que não se mordem e tic-tac de ponteiros de relógios que andam nos pulsos de toda a gente.

Correria a meio do dia.
Uma hora de... de tudo. Uma hora de ti.

Flashback de cordas, pés pendurados, pedaços de ti pelo chão.
Pedaços de mim apertados nas tuas mãos (não vá eu fugir num acesso de lucidez roubada a um louco). A uma louca. De fotografia junto ao peito e faca na mão.
Mas já não dói. Não dói. Parou. Fiz força e não doeu. Mais força e não doeu.
E fizeste força e não doeu. Mais força. E mais.
(Sempre fizeste mais força que eu.)
E não dói.
Não dói mais. E de repente uma hora já me parece um dia. E uma hora é sempre bom, quando não há duas horas.
E no dia seguinte haverá mais uma hora. E duas e três.
E créditos não acumuláveis.
5000. 4999. 4998.
Se não acumulam o melhor é gastá-los todos hoje.
Porque amanhã há mais mas eu não sou de deixar nada para amanhã.
(Afinal a consumista sou eu.)
Pego nos meus créditos. Junto-os todos numa caixinha.
Vou tirando aos poucos. Como se fossem bombons.

Um dia também te ofereci uma caixinha de mim. Só para ti. Para ires tirando pedacinhos.
E agora... Tens mais tu de mim do que eu própria.
E como me orgulho!...

Litostive

17 fevereiro 2006

Código Morse

Código Morse

Oh meu amor!
(Dizem que na escrita fica sempre bem apelar a isto ou àquilo. Ou a ti. Que estás sempre por perto sem ser preciso chamar por ti. Meu amor...)
Como os dias se arrastam longe de ti e como as noites são curtas ao teu lado.
Como o vento é gélido quando o teu abraço não me envolve o corpo.

Sozinha.
Hoje passo a noite sozinha e sabe-me bem.
Sinto alguma sanidade a voltar a mim aos poucos.
Afago os pulsos e já não temo pela minha vida. Tão pouco pela tua.
Está tudo calmo. Abro a janela. Olho um ponto perdido no infinito e penso em ti.
Aí onde estás. Nesse lugar que te toma de mim nestas noites tão tristes.
E penso... e penso.
Afinal que me importa hoje a tua ausência? E amanhã? E depois?
Haverá um dia (e tantas noites!...) em que te terei para sempre. Como afinal tenho hoje.
Tamborilo com os dedos na mesa. A noite está linda. Tu estás bem onde estás e eu estou bem onde estou.
A felicidade rascunhada em meia dúzia de palavras escritas a carvão.
Tiro um livro da prateleira e deito-me a ler.
E sabe tão bem estar contigo mas sozinha.
E descobri-o a tempo de ainda poder dizer: "até logo amor"

Amo-te. Mais uma vez. Infinitos mil. "Infinitos mil e um, vá lá..."
___-_ . Código Morse. Dizes tu...


Litostive

10 fevereiro 2006

Estrangulada II

Estrangulada II

Por vezes os sacrifícios são sinal de força. Mas hoje... hoje eram de fraqueza.

Contra todo o teu esforço, contra toda a tua vontade. Contra mim e contra o mundo. Larguei a estaca.
E fi-lo com requintes de malvadez. Apenas aliviei a pressão do corpo sobre os pés. Apenas um pouco.

Agora olha para mim, meu amor.
Dependurada. Os olhos muito abertos por uma morte rápida.

Observo-te.

Choras.
Ajoelhado no chão, sem nunca largar a corda, os dedos desfeitos, as gengivas em sangue e os cantos da boca rasgados, como que esboçando um sorriso. E que sorriso doloroso.

Ergues as mãos para o alto e imploras que alguém tenha piedade de ti.
(E eu alguma vez iria deixar-te, meu amor?)
Tem calma... Eu já desço.
Não tenhas medo.
(Mas não consegues ouvir-me...)

Os olhos esbugalhados, o corpo gelado, o fiozinho de sangue a escorrer-me pelo queixo, a cabeça pendendo sobre o peito.
Estou morta. Já não sou capaz de descer.
Nem tu foste capaz de partir a corda.

Não encontro forma de te dizer que preferia que tivesses sido tu a parti-la.
Não encontro forma de te dizer que as ratazanas que me roiam os dedos dos pés me magoavam.
Tão-pouco forma de te dizer que o sorriso era falso e que nunca parei de chorar enquanto estive agarrada à vida (afinal nunca deixei de ser a tua menina do pranto... faltou-me o lenço de mel)
Forma de te dizer que te amo demais para viver pendurada no tecto.
Forma de te dizer... Forma de te dizer.

Agora peço-te que venhas buscar-me.
Como sempre, para sempre.
Porque "nós somos para sempre". Lembras-te?

Vem buscar-me e eu prometo que desço daqui e vou contigo.

Litostive

08 fevereiro 2006

Estrangulada

Estrangulada

Tristes os que esperaram (em vão) que o tempo fosse maior que a saudade.

Finjo que não vejo os ratos que me vão roendo os dedos dos pés apoiados numa estaca demasiado estreita. Demasiado curta também.
A estaca sobre o teu corpo deitado no chão.
Ambos num esforço sobre-humano. Tu e eu. Eu para me segurar ali e tu a mim e à estaca.
Era só um pouco mais de altura, meu amor. E a minha vida.
Tento sorrir como se não tivesse uma corda ao pescoço.
Tens as mãos ensanguentadas. Vais forçando a corda... bem entrelaçada por entre os dedos em carne viva.
A estaca cravada no peito pelo peso do meu corpo pendendo do tecto.
Sem esquecer o sorriso, imploro lá de cima: "Não saias daí, meu amor... não saias daí", esperando que não me sintas a voz embargada pelas lágrimas que insistem em correr.
No fundo, sei que a corda só parte quando os dedos começarem a cair da tua mão desfeita pela força.
Nem as ratazanas o conseguiriam antes.
Tenho medo. Sempre tive. Mas hoje o medo é maior.
Porque não é a corda que me estrangula.
Tenho medo "apenas" porque há pouco tempo e muita saudade.
E não há quem lhes resista.
Só tu, meu amor.
Só tu, que já sem dedos lutas com a corda com os dentes. O peito mais forte que nunca e os cantos da boca rasgados pela força, mas sempre com um sorriso maior que o rio do meu pranto.

E dizes: "Vai correr tudo bem, amor. Eu já te tiro daí. Sou forte, lembras-te? gnr. ponte"

E sorrio. Ah, como te amo!...

Litostive

05 fevereiro 2006

Breve

Quando te calas e permaneces quieto, a observar-me. Vês-me de rastos. Eu, inquieto. Soltando gritos de raiva.
Chorando compulsivamente.
As lágrimas afogam as palavras que são levadas pela tristeza.

Quando te peço mais de mil vezes para deixares de me fazer mal.
Quando te peço que não me cortes os dedos.

As costas vergadas. Perdidas em sangue.
A cara marcada das chapadas auto-induzidas.
O pescoço em carne viva. Por tentar mexer-me apesar de estar atrelado.

Por isso tudo te digo que amanhã será outro dia. Amanhã será o dia de amanhã.

E é amanhã que te vais lembrar: “e quando ele me pedia... e quando ele me pedia...”

Kimera